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sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Beliscões de Chocolate

   Foi um daqueles beliscões dados sem força, mas que fazem os olhos se encherem de lágrimas. E era naquela parte "carnuda" do braço, logo abaixo da axila. Doeu. 
Toda vez que Maria Luísa se lembrava daquele beliscão que sua mãe lhe dera no meio do mercado, ela ria. E depois, olhando para seu filho Pedro gritando por um doce, invejava a liberdade dos pais de antigamente.
Maria lembrava até o ano: 1994. O Brasil acabara de perder a final da Copa e seu pai ficara quieto e reservado pelo resto da semana, até sua mãe começar a reclamar. Maria Luísa nunca vira o pai tão alterado, gritando até ficar roxo. Depois da discussão, a mãe pegou sua mão e levou-a para comprar o jantar.
No mercado, Maria vira um chocolate caro e pediu para levá-lo, porém sua mãe soltou um seco “não”. Mas Maria estava decidida e, jogando-se no chão, começou a gritar que queria o chocolate.
De repente, duas mãos frias como gelo agarraram seus braços e puseram-na em pé. E, antes que ela pudesse voltar a gritar, as unhas longas como garras de sua mãe apertaram a carne de seu braço e torceram-na. Maria mordeu a língua, certa de que, se soltasse mais um som, a dor fulminante prosseguiria.
Aquela fora a última vez. Por mais que quisesse algo, quando a resposta era “não”, era “não” e ponto final.
E agora, mãe de um menino de oito anos no ano de 2011, quis muito dar um beliscão nele para que “tomasse jeito”.
“Mas agora não pode.” Ela pensou, aproximando-se do filho. “É crime.” Maria ajoelhou-se à sua frente e ele parou de chorar. “Quem os políticos pensem que são para me dizerem como educar meu filho? Será que eles não sabem a diferença entre dar um beliscão e surrar a criança até ficar roxa? Não são eles que passam vergonha nestas horas.”
Maria Luísa olhou fundo nos olhos de Pedro e, com toda a calma do mundo disse:
-Eu não vou comprar o chocolate. E se você não parar de chorar agora, eu vou embora e lhe deixo aí.
Pedro voltou a chorar. Muito paciente, Maria Luísa levantou e, empurrando o carrinho, seguiu pelo corredor como se não ouvisse o choro.
Mal havia entrado em outro corredor quando sentiu Pedro segurando sua perna e, olhando para ele, viu-o analisando com muito interesse os tomates que acabara de pegar.

Fim

domingo, 7 de agosto de 2011

Quem fez a lição de casa?

Para quem é professor, existem classes inesquecíveis.

***

Professor: O que devo fazer para repartir 11 batatas por 7 pessoas?
Aluno: Purê de batata, senhor professor!

***
 Professor:- Joaquim, diga o presente do indicativo do verbo caminhar.
Aluno:- Eu caminho... Tu caminhas... Ele caminha...
Professor:- Mais depressa!
Aluno:- Nós corremos, vós correis, eles correm!

***
 
Professor: "Chovia" que tempo é?
Aluno: É tempo ruim, professor.

***
 
Professor: Quantos corações nós temos?
Aluno: Dois, professor.
Professor: Dois?!
Aluno: Sim, o meu e o seu!

***
 
Dois alunos chegam tarde à escola e justificam-se:
 O 1º Aluno diz: Acordei tarde, professor! Sonhei que fui à Polinésia e a viagem demorou muito.
 O 2º Aluno diz: E eu fui esperá-lo no aeroporto!

***
 
Professor: Pode dizer-me o nome de cinco coisas que contenham leite?
Aluno: Sim, professor. Um queijo e quatro vacas...

*** 


Um aluno de Direito a fazer um exame oral: O que é uma fraude?
Responde o aluno: É o que o Sr. Professor está a fazer.
O professor muito indignado: Ora essa, explique-se...
Diz o aluno: Segundo o Código Penal comete fraude todo aquele que se aproveita da ignorância do outro para prejudicá-lo!

***
 
Professora: Maria, aponte no mapa onde fica a América do Norte..
Maria: Aqui está.
Professor: Correto. Agora turma, quem descobriu a América?
Turma: A Maria.

*** 
Professora: João, me diga sinceramente, você ora antes de cada refeição?
Joãozinho: Não professora, não preciso... A minha mãe é uma boa cozinheira. 

*** 

Professora: Artur, a tua redação "O Meu Cão" é exatamente igual à do seu irmão. Você copiou?
Artur: Não, professora. O cão é que é o mesmo.

*** 

Professor: Bruno, que nome se dá a uma pessoa que continua a falar, mesmo quando os outros não estão interessados?
Bruno: Professor.





Fim

terça-feira, 19 de julho de 2011

Querido Diário

Adam enfiou as mãos nos cabelos escuros para esconder o quanto elas tremiam. Outra seção psicóloga começaria. O Dr. Chipperfiels estava parado na porta, esperando seu próximo paciente.
“Este é um dos meus melhores pacientes” Pensou o psicólogo, observando o homenzarrão de trinta e cinco anos se levantar. “Ele está na fase mais difícil da terapia e está aguentando com força. Geralmente as pessoas desistem ou enlouquecem.”.
Adam Spector cruzou a porta de madeira e foi recepcionado pelo mesmo cheiro de sempre: o cheiro da paranoia. Do lado esquerdo do consultório, estava a mesa do profissional com uma estante e alguns diplomas na parede. No lado direito, estavam as duas cadeiras e a mesa em que o doutor examinava seus pacientes. 
-Muito bem, Sr. Spector. – disse o médico, se sentando em uma das cadeiras. – Vamos começar.
Adam se sentou a frente do Dr. Chipperfiels, inspirando profundamente. Ele deixou-se escorregar pela cadeira, sem se importar com a etiqueta.
-Sonhou com ele esta noite? – perguntou o doutor, pegando um caderninho de notas.
-Não. – respondeu Adam indiferente, mas decidido, enquanto se distraia com uma mecha de sua franja que caiu sobre os olhos.
-Mas isto já é um grande avanço! – Dr. Chipperfiels levantou os olhos do caderno e sorriu – Quer dizer que logo teremos bons resultados.
Adam continuou brincando com a mecha, em silêncio. O psicólogo voltou ao seu caderno.
-Sr. Spector, o senhor voltou ao Parque das Pipas?
-Não.
-Bom... Fez alguma atividade física?
-Fui nadar ontem, às 13h30min. Saí da piscina às 15h00min.
-Estamos tendo ótimos progressos. Mais alguma coisa?
-Corri pelo Parque da Liberdade depois de nadar. Voltei para casa às 19h00min.
-Muito bom. Muito bom mesmo. – a caneta azul batia orgulhosamente no papel – Teve alguma recaída durante os treinos?
-Não.
Os dois homens ficaram em silêncio. Depois, o psicólogo o destruiu com a pergunta que fazia em todas as consultas.
-Voltou a se cortar no banheiro?
Adam Spector ficou em silêncio. Sabia que mentir não adiantaria.
-Sim.
Houve um suspiro de “eu já sabia”. O Dr. Chipperfiels deixou o caderno sobre a mesa e cruzou os dedos sobre o colo.
-Farei uma pergunta, Sr. Spector: por que faz isto?
Adam escorregou um pouco mais na cadeira e fintou o teto branco. Ele coçou o queixo e seus dedos foram arranhados pela barba mal-feita.
-Porque dói quando me lembro do meu irmão. Mas as dores dos cortes cobrem esta agonia. Ocultam-na.
-Sr. Spector. Já parou para pensar que este ato masoquista é apenas psicológico? Nunca passou pela sua cabeça que o senhor já superou a morte de seu irmão e apenas se agride porque se acostumou?
Adam baixou a cabeça e olhou fundo nos olhos do doutor. Os olhos de Spector eram castanhos, num tom chocolate. Muitos diziam que a cor de seus olhos era tão doce quanto seu olhar. Porém, agora, Adam sabia que ele só possuía um olhar perdido, morto.
-Não. – Adam se limitou a dizer apenas uma palavra. Depois de cinco minutos na terapia, ele começava a se cansar. Se ele apenas fizesse o que o psicólogo mandasse, ele logo encerrava a consulta e Adam podia ir embora.
-Pense nisto, Sr. Spector.
O Dr. Chipperfiels continuou falando, mas Adam se concentrou na chuva que começou a cair do lado de fora e bater na janela.

Adam levantou a gola do sobretudo para proteger-se do vento frio. Por sorte, a chuva havia parado assim que saiu do consultório. Ele enfiou as mãos nos bolsos e seguiu a passos largos até seu carro estacionado na esquina. Porém, quando chegou perto do Audi prata, resolveu voltar a pé até sua casa. Talvez fossem uns quarenta minutos de caminhada, mas Adam precisava ir bem devagar. Ele pediria para que Dominic viesse buscar o carro mais tarde. Ela sempre fazia o que ele pedia.
Enquanto caminhava, o vento arrastou um jornal que se enroscou na sua perna. Adam tirou a mão do bolso e pegou a folha. Era a primeira página do principal jornal do município. Havia a foto de um homem de, no mínimo, sessenta anos. Seu sorriso era igual à de todos os políticos. “Vote em mim!”. Embaixo a legenda:

Thomas Spector dispara nas pesquisas e é o mais cotado nas eleições.


Adam Spector chegou ao portão da Mansão Contemporânea e, antes mesmo de cruzar o portão, sentiu o cheiro de churrasco. Era sábado e o sindico sempre dava uma festa nestes dias (mesmo com chuva).
Assim que cruzou a porta, Adam quase foi atropelado pelas gêmeas do segundo andar que brincavam de pega-pega pelas escadas. Elas passaram como relâmpagos a frente dele e deram voltas em torno do enorme aquário no hall. Atrás da decoração, havia um patamar inferior que levava a uma área de churrasqueira com três mesas e uma banheira de hidromassagem. Mesmo com aquele tempo horroroso, todas as pessoas dos outros treze apartamentos estavam lá, se divertindo.
Spector viu Dominic no meio da multidão. Reconheceu-a pelos enormes cabelos louros tingidos. Já que estava de costas, a mulher de cinquenta e três anos não viu Adam chegar. Se tivesse visto, logo ela estaria ao seu lado, passando a mão em sua cabeça como se ele fosse uma criança – Adam até que gostava de ser tratado assim.
Sorrindo, ele passou pelo elevador e subiu as escadas. Morava no primeiro andar, não tinha muito que subir.
Quando chegou à sua porta de cor carmim, Adam retirou a chave do bolso e enfiou na fechadura, mas não a abriu imediatamente. Ficou um pouco parado, com a testa encostada na porta. Assim que a abrisse, seria invadido pela mesma sensação de sempre. A sensação de culpa.
Seus dedos se viraram automaticamente. O barulho suave do trinco dizia que ele poderia entrar, contudo Adam continuou parado do lado de fora. Porém, sua porta era um dos modelos mais modernos do mercado, ela não possuía maçaneta, bastava você destrancá-la que ela abriria sozinha. Por este motivo, logo se abriu uma entrada em sua frente.
Enfiando a mão trêmula pelo portal, Adam acendeu a luz. A sua frente, formou-se a sala pequena, com apenas a televisão (tela plana, quarenta e duas polegadas, fixada na parede), seu rack (uma mesinha pequena de madeira de carvalho polida cor marrom-acinzentado, com o DVD, o telefone, o Microsistem e os infinitos CDs de música clássica em cima) e o sofá (três lugares, tecido poliéster e algodão, o que lhe dava a impressão de ser um cobertor fofo. Sobre ele havia almofadas com enchimento de plumas de avestruz). Havia um quadro na parede da porta de entrada de dois metros de altura por um de largura: retratava uma mulher vestida com roupas de gala do século XIII, sentada em um luxuoso trono, séria, passiva, com as mãos relaxadas sobre o colo. Pertencia a um pintor não muito famoso, mas seu preço se assemelhava aos quadros dos mais prestigiados. A parede paralela à porta, havia outras duas: uma levava ao “escritório” de Adam e a outra levava ao seu quarto. Na parede esquerda, estava um portal que dava para a cozinha minúscula. Podia-se ver a geladeira e o fogão de inox e os inúmeros armários de marfim, além do frigobar escondido entre eles. A mesa de vidro estava empurrada a um canto do cômodo, porém raramente era usada.
Adam viu a luz vermelha piscando em seu telefone. Assim que apertou o botão da secretária eletrônica, uma mensagem comprida foi sendo produzida de trás para frente. Adam se virou de costas para o aparelho e entrou no banheiro, que ficava entre seu quarto e a cozinha.
Houve um bipe enquanto Adam tirava a camisa e abria a torneira da banheira. Então uma voz feminina, suave, mostrando o início da velhice, soou pelo telefone. A mulher parecia que estava sendo obrigada a ligar.
-Adam? Sou eu. Você deve estar na terapia agora, mas eu resolvi arriscar...
Spector fechou a torneira e encostou-se ao batente da porta. Unindo as sobrancelhas, ele se perguntou por que sua mãe estava ligando.  
-Seu pai está indo muito bem na campanha. Ele... – Adam ignorou estas notícias, por mais que fosse entusiasmado o tom de sua mãe. Não se importava com o que acontecia com seu pai, os dois não se falavam há seis meses. Durante dois minutos, o assunto foram as eleições. Depois, sua mãe se calou e baixou o tom, voltando a ficar desinteressada – E a terapia, como vai? Espero que você esteja melhor. Foi muito duro para mim e seu pai quando você entrou em depressão assim que Alex morreu. – Adam sabia o que ela queria dizer. Traduzindo: “Seria um desastre para a imagem de Thomas se todos soubessem que seu filho foi internado em uma clínica psiquiátrica por tentar se suicidar quando seu outro filho morreu.” – Puxa... Já faz seis meses que ele morreu... Nunca vou esquecer quando ele entrou na faculdade de direito... Foi o orgulho da família. – Adam inspirou fundo enquanto sua mãe passava os próximos cinco minutos relembrando os momentos de seu irmão. Ele era o favorito. Para dizer a verdade, Alex era o único filho para Thomas e Laura, Adam foi apenas um acaso, um acidente. Eles nunca quiseram um segundo filho, e, por isto, nunca dedicaram seu tempo a ele. Ele era apenas uma decoração em sua casa. – Ou então quando ele... – Adam se virou de costas e acabou de se despir. Ele entrou na banheira e fechou os olhos enquanto escutava o resto do déjà vu. – Ele sempre foi um grande homem. E teria sido como seu pai, se não fosse aquele acidente.
Adam abriu os olhos. Mas o que viu não foi o teto de seu banheiro.
O que viu foi Alex a sua frente, com o cabelo escuro molhado pela chuva. Ele balançava a cabeça baixa enquanto Adam dizia as mais duras palavras. Após o irmão mais novo ter descontado toda a raiva sobre ele, Alex balançou a cabeça mais uma vez.
-Não sabe o que está dizendo, Dam. Você realmente não sabe.
-Eu sei sim, Alexander! Eu sei que você é um vigarista! Um trapaceiro! Um golpista! Exatamente como o papai! Seu tratante sujo! E eu confiei em você!
-Não é o que parece, Dam!
-Ah, não é? E como, de repente, apareceram cem mil na sua conta bancária? Você só trabalhou muito, é isto? Alexander, pelo menos tenha a cara-de-pau de assumir a cafajestice! Você deu golpes! E, pela quantia, em todos os seus clientes!
-Não foi nada disso, Adam! – ele levantou a cabeça e entortou as sobrancelhas com fúria.
-E o que foi?!
-Eu não posso explicar! – Alex baixou a cabeça novamente, mas ainda assim era maior que Adam. – Mas, entenda, não foi algo sujo.
-Seu cretino! Mentiroso! Eu confiei em você! Achei que iria me livrar de todos estes crimes de colarinho branco quando fui morar com você aqui! – Adam esticou o braço para trás, indicando a Mansão Contemporânea. Todos os moradores estavam nas janelas, olhando os dois homens brigando – Mas você é tão medíocre quanto os outros! Seu patife! Sádico! Cafajeste!
Alex não respondeu. Adam continuou xingando-o até mesmo quando se engasgava com as gotas da chuva. Até que os dois ficaram em silêncio. Alex com a cabeça baixa, Adam arfando. Até que o mais velho dos irmãos entrou na Mercedes preta atrás de si, sem dizer nada.
Adam encarou seu reflexo no carro. A janela do motorista abaixou e o rosto entristecido de Alex apareceu.
-Você realmente não sabe o que está dizendo, Dam. – e antes que Adam retrucasse, Alex completou – O que fiz foi porque você é a única pessoa no mundo que importa para mim. Eu te amei muito Adam. Muito mesmo – E, com estas palavras, fechou a janela e ligou o automóvel. Em instantes, ele partiu.
Adam observou o carro ir embora até sumir de vista. Mal sabia ele que, assim que entrasse, tomasse um banho e sentasse no sofá para assistir o noticiário, daria de cara com a notícia de uma Mercedes preta dirigindo em alta velocidade na contramão e que bateu logo em seguida em um caminhão. Assim que a ambulância e a polícia chegaram ao local, tiraram o motorista do carro e viram que ele morreu no momento do choque.
Se alguém perguntasse qual foi a reação de Adam no momento, ele diria que tudo ficou escuro. E que, quando acordou, estava na clínica psiquiátrica, preso em uma cama com uma camisa de força.
Adam se levantou cambaleante da banheira e enrolou as pernas na toalha. Ele foi até a sala, mas estacou quando ouviu as frases de sua mãe.
-É uma pena que você não tenha sido como seu irmão. Ele sim era alguém digno de portar o nome Spector. Adam, Adam... Apesar de ter vinte anos já, ainda parece ter dez! Eu me lembro que Alex sempre te encobria pelas suas gafes! Quando você derrubou molho no terno do presidente do partido?! Por Deus, quase que seu pai foi demitido! Mas Alex estava lá, para ajudar! Que homem, não? Apesar de seu corpo estar morto, sua alma estará sempre viva no coração de sua mãe. Eu...
Adam correu até o telefone e o puxou com raiva. Ele o arremessou pela janela enquanto gritava de ódio. Depois, ele correu até a cozinha a abriu a gaveta dos talheres. Procurou freneticamente pela faca de carnes. E quando a encontrou, olhou seu reflexo na lâmina como um louco.

-Que barulho é esse? – perguntou Lúcia para sua tia Dominic.
-Querida, o que não falta é barulho aqui!- respondeu a mulher no meio dos gritos.
Lúcia olhou para cima, intrigada.
-Não, escute! Tem um barulho estranho! VINDO LÁ DE CIMA!
Como num toque de mágica, todos se calaram para ouvir. E, realmente, havia um barulho no andar de cima. Algo parecido com louça sendo arremessada na parede.
-Deve ser o Sr. Spector. – disse umas das gêmeas do segundo andar.
Todos os adultos olharam para a menina. Sua irmã assentiu.
-É! Ele acabou de chegar! E subiu correndo para sua casa!
Dominic se dirigiu para a escada.
-Ele já chegou? Mas ele nem veio me avisar!
-Ah, ele viu a senhora, mas foi direto para cima! – respondeu a outra gêmea.
-É. – completou a irmã – Ele estava bem tristinho. Acho que ele viu você feliz e não quis atrapalhar.
Dominic subiu as escadas o mais rápido que sua idade podia aguentar. Assim que chegou a seu andar, viu a porta de Adam entreaberta. Ela andou devagar em direção ao apartamento, com medo que algum monstro saísse dali.
Quando estava bem próxima, Dominic empurrou a porta cautelosamente. Contudo, ela não foi cautelosa quando atravessou o apartamento correndo em direção ao corpo caído na porta do banheiro.
-ADAM!
Dominic se ajoelhou ao lado do corpo nu de Spector. Sobre a panturrilha direita, um corte fundo transbordava sangue. A mão esquerda apertava com força a lâmina da faca grande de cortar carnes e mais sangue saía de sua palma. Deitado de bruços, Adam choramingava baixinho e, ora ou outra, suas cotas davam um pulo graças aos soluços. 
-Adam... – a mulher passou a mão delicadamente pelo cabelo molhado do homem.
Os olhos de Dominic subiram e desceram pelo corpo do infeliz. Por tantas vezes desejou tê-lo em seus braços... Tanto Adam quanto Alex já desejara. Mas sabia que ambos sempre a amaram como amariam uma mãe. É uma pena que aqueles rapazes maravilhosos tiveram pais tão nojentos e indesejáveis. Ela nunca gostaria que alguém tivesse pais assim, até seu pior inimigo.
Com ajuda de vizinhos que chegaram em seguida, Dominic colocou Adam na cama deste último e limpou-lhe o ferimento na perna e na mão. Já acostumara a fazer esta tarefa (Adam se cortava com frequência).
Dominic sentia a consciência de Adam. Ele estava acordado. Quando levantou a cabeça para visualizá-lo, viu que o cotovelo dele tapava seu rosto. Mesmo assim, era possível ver as lágrimas caindo pelo queixo e pescoço.
Um moço tão jovem. Pensou a mulher. Mas com sua vida acabada.
Sem dizer uma palavra, Dominic acabou de cuidar de Adam e foi até o banheiro. Por sorte, ela não sentia enjoo ao ver sangue. Ao lado da pia, havia uma poça vermelho-escuro, quase preto. Em um livro de romance policial, aquilo seria a prova de um crime. Ela foi até sua casa e pegou alguns produtos de limpeza.
Incrivelmente, os irmãos Spector não possuíam lavanderia, eles a quebraram para aumentar o tamanho da cozinha. Por um tempo, eles levavam suas roupas sujas para uma lavanderia num bairro próximo. Depois, Dominic se propôs a lavar as roupas deles e, uma vez por semana, limpar seu apartamento. Claro, naquela época, ela morria de amores pelos dois. Contudo, após um tempo, ela fazia as tarefas domesticas simplesmente por respeito aos “meninos”.
Ela limpou a poça de sangue como se fosse de água. Logo em seguida, pegou as roupas de Adam espalhadas pelo chão e as colocou no cesto. Em seguida, foi até o quarto de Adam pegar roupas limpas para ele. O homem continuava deitado, com o rosto escondido no braço. Assim que pegou algo relativamente confortável, ela se sentou na beira da cama.
-Adam, querido. – ela colocou a mão em seu peito. De todos os maridos e “namoridos” que já teve em sua vida, nenhum tinha os pelos no tórax tão macios quanto Adam. Geralmente eram fios ásperos e grossos, mas os de Adam pareciam plumas. Sua mão subiu e desceu pelo seu tronco judiado do rapaz – Vamos. Se troque. – Ela fez a mão passar para o braço dele, mas não o puxou. Apenas o acariciou – Não pode ficar assim. Está frio.
Ela pegou o pulso dele e o puxou amavelmente. Adam deixou. Por baixo do braço, apareceu seu rosto vermelho e abatido, cheio de lamentos e pranto. Ele fungou enquanto se sentava e pegava sua roupa. Dominic saiu do quarto e fechou a porta, assim ele poderia sentir privacidade.
Por fim, ela foi até a cozinha para cozinhar uma sopa. Enquanto mexia o caldo na panela, escutou os passos culpados de Adam chegando atrás de si. Com seu extinto materno, o sentiu encostando-se ao batente do arco e contempla-la pelas costas. Ela não deixou de sorrir de satisfação. Talvez, lá no fundo, ele sentisse atração por ela.
Porém, antes que pudesse terminar de cozinhar, o sentiu indo embora. Olhando sobre o ombro, ela o viu se encaminhando novamente para seu quarto e ouviu o rangido da cama quando ele se deitou.
Depois de terminar de cozinhar, Dominic voltou ao quarto. Spector olhava pela janela do quarto, observando a chuva aterrorizante bater em sua janela, de costas para a porta. Dominic novamente se sentou na cama e acariciou seu braço. Ele não desviou os olhos da janela.
-Querido, venha comer um pouco. – Adam em silêncio – Você está fraco, perdeu muito sangue. – Adam em silêncio – Precisa se alimentar. – Adam em silêncio – Venha querido. Fiz uma sopa. Coma pelo menos um pouco.
Subitamente as lágrimas voltaram. Dominic arregalou os olhos quando as viu chegar sem aviso. Spector mordeu os lábios e inspirou fundo, por entre os tremidos que o choro formava.
-Era a favorita dele... – a última palavra quase não saiu por causa do choro.
-O que era a favorita dele?
Adam riu.
-A sopa. Macarrão argola, cenoura e batata. Era a sopa favorita do...
Adam soltou um soluço e ocultou a face no travesseiro. Suas costas tremiam e depois davam pulos. Dominic suspirou e o acariciou. Não sabia o que dizer.
Quando Adam vai superar?
De repente, Dominic se lembrou.
-Espere aqui, Adam. Tenho um presente para te dar. Quer dizer, para te devolver.
Adam percebeu que sua vizinha se levantou num pulo e saiu de seu apartamento. Ele não se importou. Nada mais importava para ele.
Depois de alguns minutos, ela voltou e sentou suavemente na cama. Adam levantou a cabeça com relutância, porém deveria mostrar um pouco de respeito àquela mulher que tinha tanta paciência para cuidar dele.
Nas mãos de Dominic havia um livro grosso, talvez de quinhentas páginas. Sua capa era vinho e havia uma pena dourada dentro de um quadrado também dourado na frente. As páginas já estavam um pouco amareladas e amassadas.
-Aqui. – ela estendeu o livro. Adam pegou-o e estudou-o – Era o diário de seu irmão – Adam levantou os olhos, incrédulo – Eu o achei embaixo da cama dele quando estávamos retirando suas coisas. Eu ia te entregar, mas você ainda estava na clínica e eu... Bem... Fiquei um pouco curiosa... – Dominic sorriu encabulada – Sei que não tinha este direito, mas eu não resisti. Além do que, a vida de seu irmão parece um conto de fadas. – Ele apontou o livro com os olhos – Não sabe o quanto seu irmão te amava, Adam. Ele relembra isto em cada página deste diário. Leia-o. Sei que vai te ajudar a superar a morte dele.
Adam olhou o livro. O diário... De Alex. Ele estava prestes a abriu quando uma música começou a tocar. A festa no térreo recomeçou. Adam viu Dominic olhar para trás, ansiosa por voltar. Porém ela continuou sentada com ele.
-Dominic, volte para a festa. – Adam sorriu. – Não vou me sentir melhor se você ficar aqui, comigo, com um cara chato e depressivo. – ele alargou o sorriso para ser convincente.
Dominic suspirou. Mas parecia um suspiro de alivio. Ela se levantou. Mas não saiu. Parecia esperar outro comando.
Adam fez um movimento para ela ir. Mas antes de partir, ela falou:
-Coma pelo menos um pouco, Adam. Tem que estar forte para quando sua mãe chegar.
Adam se levantou num pulo.
-O QUE? Minha mãe vai vir aqui?
-Sim. Ela deixou um recado na secretária eletrônica. Disse que por volta das seis estará aqui.
Adam endureceu. Alguma coisa aconteceu. Sua mãe nunca se importou com ele.
-Mas... Mas o que ela disse? Eu não consegui terminar o recado.
Dominic uniu as mãos na frente do corpo e deu de ombros.
-Bem, ela falou das eleições. Depois falou do seu irmão. E depois ela disse que viria fazer uma visita. Ela e seu pai.
-O que? Meu pai também vem?
-Sim. Eles...
-Mas, POR QUÊ?
-Segundo sua mãe, porque eles são seus pais!
Adam emudeceu. Dominic apenas o encarou. Na hora em que ouviu a notícia, ficou tão surpresa quanto ele.
Spector se sentou na cama, descrente. Sua mãe e seu pai? Aqui? Consigo?
De repente, Adam se lembrou de Dominic.
-Hum... Dominic, você não vai para a festa?
-Vou. – ela balançou a cabeça, mas não saiu do lugar.
Adam se levantou e começou a andar de um lado para outro. Depois parou e encarou a vizinha.
-Então vá.
Como se tivesse acabado de lembrar como se mexer, Dominic assentiu e saiu do apartamento, quase correndo. Mas Adam ficou com sua agonia.
O que eles querem aqui?
Por mais que soubesse o quanto seus pais sentiam repugnância dele, Adam sempre fazia tudo o que estivesse ao seu alcance para impressioná-los e, pelo menos uma vez na vida, sentissem orgulho dele.
Agora não era diferente. Adam correu para trocar de roupa e ficar mais apresentável. E, em seguida, começou a arrumar a casa às pressas. Ele pegou o diário de Alex e o enfiou na estante em seu escritório. O leria mais tarde.

O barulho das sirenes disse a Adam que seus pais estavam chegando. Ele foi até a janela do hall e se debruçou sobre o para-peito. Motos, carros pretos, policiais e toda a segurança possível faziam a escolta da limusine preta que se aproximava devagar. Seu coração começou a martelar no peito. Toda chance que tinha para orgulhá-los era uma chance.
A limusine preta estacionou e foi cercada pelos moradores dos prédios vizinhos. Seguranças que mais pareciam armários empurraram os curiosos para longe enquanto um casal descia do carro. Primeiro a mulher: pequena, magra, de cabelos curtos e loiros, com uma roupa marrom escuro. Depois o homem: troncudo, largo, cabelos brancos, um terno azul-marinho. Eles acenaram contentes para a multidão e cumprimentavam um ou outro. Aos poucos foram entrando na Mansão Contemporânea.
Adam desceu para o térreo correndo e parou ao lado da porta. Entretanto, quem abriu a porta não foram seus pais ou os seguranças de seus pais: foi um repórter. Assim que viu Adam, ele pegou seus ombros e disse as pressas:
-Você está pronto? O jornal logo entrará no ar! Já estamos atrasados! Vamos até seu apartamento para começar a entrevista!
O repórter começou a puxar Adam pela escada. Mas este último parou e tentou se livrar do homem.
-Espere! Que entrevista?
-Seus pais não lhe disseram? Vamos entrevista-lo hoje! Você será o destaque da nossa série de reportagem “Superação”! Vamos falar de pessoas neuróticas depressivas e em como elas superaram isto!
-Mas ninguém me avisou da reportagem! Meus pais disseram que só vinha me ver!
-O que? Não, não! Eles vieram para aparecerem na reportagem! Sabe, para a campanha de seu pai! E para mostrarem que eles são pais preocupados! Sabe como é!
Enquanto o repórter puxava Adam, este último sentiu seu mundo desmoronar como acontecia todas as vezes que seus pais deixavam bem explicito que eles não o amavam.   
  
Adam choramingou baixo deitado em sua cama. Segurando firme a faca de carnes na mão direita, ele percebia o quanto seu sangue era quente e lento enquanto escorria do ferimento na barriga. Ele tentou apagar da memória aquela tarde. 
Eles disseram que acompanhavam as terapias! Por um instante, Adam pensou em rir ironicamente e contar todas as verdades. Contar que a família quase nunca se falava, que seus pais mal sabiam o que ele fazia nas terapias, que seus pais não sabiam que ele era neurótico depressivo e que se cortava no banheiro, que seus pais só estavam usando a imagem de “pais preocupados com o filho louco, que não sabem por que isto foi acontecer justo com eles, sendo que eles sempre deram amor ao filho, que estão fazendo tudo o que é possível e impossível para ajudar na recuperação dele”. Era tudo encenação. Até os repórteres sabiam que eram umas farsas aquelas palavras de amor saídas dos pais e dirigidas ao filho.
Depois que a entrevista acabou, seu pai fez mais algumas propagandas sobre seu mandato. E quando a reportagem terminou, os pais trocaram palavras muito rápidas com o produtor da emissora e foram embora. Eles nem olharam para Adam.
Adam pensou no que aconteceria se ele cortasse os pulsos agora, sem fazer ruídos. Dominic o encontraria morto amanhã. Correria pelo mundo inteiro esta notícia. E seus pais usariam esta oportunidade para ganhar mais votos.
Não, não vou dar este gostinho a eles.  

Spector acordou com um pulo quando sentiu algo gelado passar pela sua barriga e sensação de ardência vir logo em seguida. Assim que seus olhos se acostumaram a claridade, ele viu Dominic sentada na cama olhando-o muito feio. Parecia estar muito brava. Assim que ela notou que ele acordara, Dominic bufou:
-Quer dizer que o senhor agora se corta na cama durante a noite? Diga logo, Adam: você quer se matar? Porque, se você quiser, eu te ensino uma forma infalível de conseguir isto: corte bem fundo os pulsos ou o pescoço. Eu lhe asseguro que você vai morrer. – Spector abriu a boca para retrucar, mas Dominic continuou – O que você tem na cabeça Adam? Por que você não supera a morte do seu irmão?! Já foi! Ele morreu! Você viveu! Tem que continuar assim! Bola para frente! Segue sua vida! Você não pode passar a eternidade toda se consumindo porque Alex morreu! Você tem que viver! Não pode mais continuar assim!
Adam emudeceu, exatamente como acontecera quando soubera da vinda dos pais. Ele ouviu bem? Dominic lhe dera uma... Bronca? O que aconteceu com ela? Dominic nunca brigara com ele. Ela sempre fizera suas vontades. Brigar com ele não estava em seu vocabulário.
O olhar de ódio de Dominic era matador. Spector sentiu-se intimidado tamanho a ferocidade daquela mulher.
-Escute bem Adam! Eu já estou cansada desta sua infantilidade. Ou você supera a morte do seu irmão ou você supera a morte do seu irmão. Não dá mais para viver assim. Você me entendeu?
Spector continuava mudo. O que deu nela?
-Adam. Você me entendeu?
O coração dele disparou. Onde estava aquela maldita faca? Olhando a volta, ele apenas encontrou seu quarto arrumado. Ele voltou os olhos para Dominic. Ela estava cada vez mais furiosa.
E quando ela abriu a boca para falar mais uma vez, Adam explodiu.
-Saia da minha casa! – ele se levantou e se afastou, encostando-se à parede – Saia! AGORA!
Dominic arregalou os olhos. Não esperava esta reação. Ela esperava apenas que ele concordasse. Mas deu tudo errado. Ele estava com raiva. A estava expulsando de sua casa.
-Saia ou eu chamo a polícia!
A mulher se levantou devagar. Mas quando Adam avançou sobre ela com passos violentos, Dominic correu o máximo que conseguiu. Pernas para que te quero!
Spector observou Dominic correr dele como o diabo foge da cruz. Não queria perder sua única amiga, mas depois de quase ser forçada a superar...
Adam sentou na cama, atordoado. O que faltava acontecer?
Desamparado, ele se levantou e foi até o escritório. Ao parar na batente da porta, se lembrou que ali era o quarto de seu irmão. Ele ainda podia visualizar a cama king size encostada na parede direita e os criados mudos ao lado. Só isto. As roupas dele ficavam com as de Adam no closet que havia no quarto deste último. Mas existia uma marca no quarto de Alex: o cobertor preto. Ele nunca tirava aquele cobertor da cama, nem para lavar.
-Seu louco! – disse Adam uma vez – Aquele cobertor está fedendo a gambá! Coloque-o para lavar!
-Não. – respondeu Alex.
-Você vai morrer asfixiado!
E os dois riram. Mas Alex não largou o cobertor.
Depois da morte dele e de Adam ser internado, a mãe dos dois foi até o apartamento e retirou os móveis do filho mais velho. Quando voltou para casa e viu o quarto vazio, Adam teve um acesso de raiva e mais uma vez tentou se matar. Na verdade, quando ele pegou a lâmina de barbear e a pressionou contra o pulso, ela escorregou de suas mãos e fez apenas uma cortezinho. Doeu um pouco. Mas aquela dor foi satisfatória e Adam se sentiu... Melhor. Quando pegou a lâmina no chão e fez outro corte pequeno no braço, a sensação de júbilo aumentou. E ele começou a se cortar como um louco. Somente parou quando Dominic veio saber por que ele estava gritando e o impediu de continuar.
Adam entrou no escritório e sentou na cadeira de couro preto. Ele a girou trezentos e sessenta graus. Ele nunca usou aquele cômodo, apenas sentava ali e ficava contemplando-o.
No entanto, quando Adam analisou sua estante intocável, notou algo fora do lugar. Pior, notou algo novo no lugar. Um livro grosso de capa vinho.
Adam então se lembrou. O diário de Alex! Ele andou até a estante e pegou o enorme livro. Seu peso era impressionante.
Sentando-se novamente na cadeira e depositando o diário na mesa, Adam passou os dedos pela capa surrada. Alguma coisa em seu âmago se espremia, dizendo que a partir daquele momento sua vida nunca mais seria a mesma.
Seu indicador e seu polegar pegaram suavemente a ponta do livro e a seguraram firme. Com um suspiro curioso, Alex abriu o diário.
-Mas... O que?
Uma folha amarelada. Era o que tinha a primeira página. Adam virou a lauda. Mas a segunda e a terceira página também estavam em branco. Ele virou mais uma. E outra. E mais outra. Mas todas as páginas estavam em branco. Ele folheou o livro inteiro, mas nada havia escrito nele. Era como a estante tivesse sugado as palavras.
Ou será que Dominic está louca?
Adam voltou para a primeira página e examinou-a. Talvez fosse uma brincadeira da mulher. Talvez ela quisesse que ele escrevesse um diário.
Por que não?
Adam pegou uma das canetas. Mas pensou melhor. Algo especial como um diário merecia algo a altura. Spector devolveu a caneta à porta-caneta e abriu a primeira gaveta da escrivaninha. Ali existiam blocos, agendas, materiais de gráficas (fita adesivas, colas, tesouras, clipes) e calculadoras inutilizados. E lá no fundo havia uma caixinha de veludo vermelha. Adam a retirou da gaveta e a abriu. A caixinha portava uma caneta em forma de pena vermelha. Foi o último presente que recebera de seu irmão, talvez um mês antes de morrer. Adam a pegou e deixou a caixinha de lado. Ele se debruçou sobre a folha e inspirou fundo. Então escreveu:

5 de junho de 2010, sábado.

O barulho a janela se fechando bruscamente fez Adam pular. Ele virou o rosto para a janela que batia com o vento. Este último fez as páginas do livro virarem.
Adam se levantou e a fechou. Depois voltou a se sentar. Ele abriu o livro na primeira página. E se paralisou. Embaixo da data, estava escrito:

E pensar que nesta mesma folha eu escrevi no dia 25 de outubro de 2008. Só não me lembro que dia da semana caiu.

Adam não ousava nem gritar. Seu coração se descompassou. Suor começou a brotar de sua testa. De repente, novas palavras foram se formam com uma tinta que vinha de dentro da página.

Que cara é essa Dam? Parece que viu um fantasma!

Adam se levantou para sair correndo. Mas a porta se fechou inesperadamente com um baque terrível. Ele parou no meio do escritório. Pensou em começara gritar. Mas o que poderiam fazer para ajudá-lo? Chamar um exorcista?
As folhas do diário começaram a virar. Ora elas iam para a direita, ora elas voltavam para a esquerda. Adam encostou-se à parede, assombrado. Seus dentes começaram a bater. A velocidade em que as folhas viravam aumentou.
Adam sentou novamente na cadeira, ereto de medo. As folhas viraram para lá e para cá. E depois pararam novamente na primeira página. Havia novas palavras.

Dam. Fique calmo. Sou eu, o Alex.

Isto não foi muito tranquilizador. Adam ficou mais aterrorizado do que antes. Mas, por impulso, ele pegou a caneta-pena e escreveu, mesmo com a mão trêmula.

Al?

Claro, Dam. Quem achou que fosse encontrar?

Para ser sincero, eu não pensei que encontraria um bate-papo num diário.

HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!

Alex não deixou de rir ao notar que conversava com alguém por um diário. Mas... Era seu irmão.

Al... Como é que estamos conversando? Quer dizer, você... Morreu.

É, eu morri... Mas e daí?

Bem, geralmente quando as pessoas morrem, elas não conversam com os vivos. Muito menos via-diário.

Tem razão. Mas isto não importa. Já faz um bom tempo que eu queria conversar com você. Explicar melhor as coisas. Mas me conte: e o trabalho? Como estão todos lá no teatro? Fez alguma peça nova?
                                                                                                          
O teatro. Adam havia se esquecido completamente do teatro. Ele fizera artes cênicas na faculdade e trabalhava em um teatro. O único que apoiara sua paixão por atuar foi seu irmão. Ele o encorajou a prestar artes na faculdade e não a fazer ciências sociais como Adam pretendia fazer (mais uma vez, ele queria impressionar os pais). Alex sempre estava na primeira fileira quando havia uma peça de Adam. Sempre incentivou Adam a ser o que o irmão mais novo queria ser.
Mas depois da morte de Alexander, Adam abandonou completamente sua carreira de ator. Para ser franca, Adam nunca pensou no teatro depois de tentar se suicidar.

O teatro... Faz tempo que eu não vou lá. Para dizer a verdade, eu nunca mais fui lá depois que... Depois do que aconteceu com você.

Por quê?

Bem... Eu não aguentei quando você morreu. Eu... Sou um neurótico depressivo. É meio estranho falar... Assim, abertamente. Muito esquisito. Parece que eu estou contando um segredo que todos já sabem, mas que eu nunca quis revelar. Entende-me?

Você... Você entrou em depressão depois que eu morri?

Bem... Eu me senti culpado.

Culpado? Por quê?

Ah... Depois da nossa discussão... Você se atirou contra um caminhão e eu... Foi muito duro para mim. Eu tive quase certeza que foi por minha causa que você...

VOCÊ ENTROU EM DEPRESSÃO POR QUE EU MORRI?! O QUE VOCÊ TEM NA CABEÇA ADAM?! EU NÃO POSSO CRER QUE VOCÊ LARGOU O TEATRO E SE TORNOU UM NEURÓTICO DEPRESSIVO POR CAUSA DISSO!!!

É fácil para você falar. Você que morreu.

EU... EU NÃO POSSO ACREDITAR NISTO!!! SIMPLESMENTE NÃO POSSO!!!

Al

QUAL É SEU PROBLEMA ADAM?

Adam ficou novamente paralisado e encarou a folha de papel. Ele estava levando bronca de um diário? Pela primeira vez desde que começou seu bate-papo, ele contraiu a ideia de que estava louco. Ele pensou se deveria responder ou enfiar o diário na estante e ir embora, fingindo que nada aconteceu. Porém, ele respondeu:

Al. Acalme-se. Eu sei que você vai se indignar, mas eu não aguentei. Foi muito para minha cabeça. Como é que você quer que eu conviva com esta sensação de culpa? Com esta sensação de que eu causei isto? Coloque-se no meu lugar!

Alex não respondeu durante instantes. Até que ele escreveu mais calmo.

Tem razão. Desculpe. Mas eu também me senti culpado quando você disse que largou o teatro. Você ama atuar. Seria muito egoísta da minha parte tirar isto de você.

Acredite. Você foi bem egoísta quando SE tirou de mim. Não foi nada altruísta da sua parte.

HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!! Tem razão. Desculpe. Mas eu deveria fazer isto para que você recebesse

Alex não completou. Ficou em silêncio. Adam uniu as sobrancelhas, sem entender.

Recebesse o que?

Alex não respondeu.

Al?

Durante alguns instantes, Alex não respondeu. Depois ele escreveu.

Esqueça, não é importante. Vamos mudar de assunto. Vamos falar desta roupa horrorosa que você está vestindo. Preto? Você nunca foi chegado no preto!

Sabia que as pessoas usam roupas pretas quando estão de luto?

Ah, faça-me o favor, né, Adam? Eu morri faz seis meses! Você está desde lá usando preto?

Acho que sim. Faz um bom tempo que eu não noto o que visto.

Você não existe, Dam!

Olha quem fala né? Literalmente!

É mesmo! Você existe mais do que eu! Mas chega de falar que eu estou morto! Vamos comprar roupas para você! Pegue o diário e a caneta e vamos até aquela loja na esquina.

Agora?

Não, amanhã! Claro que agora! Vamos!

E Alex não respondeu mais. Adam riu e fechou o diário com a caneta dentro. Ele foi até o quarto e pegou a carteira. E saiu.
Adam quase correu até a loja. Quando cruzou a porta de vidro da loja, uma moça que trabalhava na loja veio logo recepciona-lo.
-Posso ajudar?
-Sim. Pode me levar até a seção das roupas esportivas?
-Claro. Acompanhe-me.
A mulher se virou e passou por entre os inúmeros cabides em ziguezague. Adam a seguiu. Neste meio-tempo, ele abriu o diário. Uma frase o esperava.

Roupas esportivas?

Adam escreveu em pé enquanto seguia a mulher.

Foi a primeira coisa que passou pela minha cabeça.

Você é um ator. Deveria escolher... Roupas sociais ou... Roupas chiques. Sei lá! Não sou bom neste negócio de moda!

Eu não sou nenhum expert!

-Aqui senhor! Procura alguma peça em especial?
-Não, obrigado.
-Aqui tem uma cesta, senhor. – a moça indicou uma montanha de cestas empilhadas. – Pode colocar suas roupas dentro.
-Obrigado. 
Adam sorriu para a mulher e olhou os cabides enquanto ela se afastava. Pelo rabo dos olhos, ele a viu cochichar com uma mulher no balcão. Provavelmente foi reconhecido com “filho problemático do próximo presidente”. Mas não deu importância. Continuou olhando as roupas. Ele abriu o diário em busca de ajuda. Mas antes que escrevesse Alex já se antecipara.

Pegue as roupas que te chamam atenção! Você devolve as que não gostou! Eu sempre fazia isto!

Adam começou a colocar na cesta todas as roupas que encontrou. Antes dos cinco primeiros minutos, a cesta de Spector já estava transbordando. Ele olhou novamente o diário.

Vá experimentar!

O irmão mais novo nunca pensou que seria divertido fazer compras. Quando chegou à cabine, ele deixou a cesta em um canto, o diário aberto no chão e começou a tirar sua roupa. O barulho de folha virando chamou sua atenção. Ele olhou o livro e viu um comentário ordinário do irmão.

Pelo visto você afogou suas mágoas nos doces! Quando foi a última fez que você praticou um exercício físico? Está mais gordo do que nosso vizinho do quinto andar que morreu de parada cardíaca! HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!

Adam balançou a cabeça e começou a experimentar suas novas roupas. Hora ou outra, seu irmão comentava. Ficou bom, ficou justo, ficou larga, ficou apertado, ficou homossexual. Coisas assim. No fim, Adam ficou com um terço das roupas que escolhera.

Vou ver outras roupas.

Ele saiu da cabine e procurou a moça que o atendera. Quando ela notou que Adam a procurava, foi correndo ajuda-lo. Antes que perguntasse o que ele queria, ele entregou as roupas que não queria.
-Pode devolver estas roupas para mim? E depois, pode guardar estas outras peças de roupas para mim?
-Pois... Pois não.
-Mas, primeiro, me leve até a parte das roupas à rigor, por favor.
-Sim. Acompanhe-me.
Adam abriu o diário enquanto a moça o levava a outra parte da loja.

Agora sim você se tornara uma pessoa decente.

Cala boca!

Estou com a boca calada há seis meses.

Então para de escrever!

HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!


-Obrigada! Volte sempre! – disse a balconista para Adam enquanto olhava novamente a tela do computador. A loja faturou quatro mil com um único cliente. Isto é que é sorte.
Adam mal conseguia segurar todas as sacolas. O dia já estava escuro. Por sorte morava perto. Em seis meses, esta era a primeira vez que Adam sorria com sinceridade.
Assim que cruzou o portão da Mansão Contemporânea, Adam esbarrou na sobrinha de Dominic, Lúcia. Os dois brincaram juntos quando eram crianças. Quer dizer, quando Lúcia era criança.
Ela tinha seis anos e Adam, quinze. Ele corria atrás dela por todo o prédio e só paravam quando o sindico vinha reclamar do barulho. Ele achava tedioso correr atrás de uma menininha, mas mesmo assim ele não conseguia dizer não quando Lúcia batia na sua porta e pedia para irem brincar. Foi uma grande perda para ele quando ela cresceu e começou a se importar mais com meninos de sua idade do que com brincadeiras. Porém, sabia que era a ordem natural das coisas.
Desde então, ele nunca mais parara para vê-la de verdade. Ele não a viu se tornar a mulher que era naquele dia. Somente agora Adam realmente a via: um corpo esbelto, com muitas curvas; não era tão alta a ponto de ser uma miss, mas tinha uma boa estatura; tinha sobrancelhas bem definidas que davam a impressão de Lúcia ser muito segura em suas decisões; seus cabelos chegavam somente aos ombros e eram castanhos, num tom bem quente... Por um breve instante, Adam sentiu uma forte vontade de largar as sacolas e acariciar os fios de Lúcia.
-Adam! – sua voz era tão quente quanto a tonalidade de seus cabelos – Nossa! Minha tia estava te procurando! Ela te viu saindo sem avisar... Na verdade, ela foi atrás de você agora a pouco! Aonde você foi?
-Eu... – a voz de Adam sumiu. Seu coração acelerou. Ele tentou falar, mas não conseguia. De repente, as palavras saíram de uma vez, como se tivesse recebido um tapa na nuca – Fui fazer compras precisava de roupas novas comprei como um louco e isto me ajudou bastante pode me ajudar a colocar todas estas sacolas no meu apartamento?
Lúcia riu e assentiu com a cabeça. Ela pegou as sacolas que estavam na mão direita de Adam. Por um breve instante, suas mãos se tocaram. E, assim como os cabelos e a voz de Lúcia, sua pele também era quente. Ou talvez Adam pensasse que ela era quente...
Ela começou a subir as escadas e com Adam em seu encalce. Assim que chegaram, ele abriu o apartamento e deixou Lúcia entrar. Ela olhou a volta impressionada.
-Nossa. Seu apartamento é muito bonito.
Adam deixou cuidadosamente as sacolas no chão e começou a mexer em uma delas, procurando pelo diário. Ele retrucou o comentário de Lúcia:
-Quando você chegou, ele ficou.
-O que?
-Bonito.
-Ah!
De repente, ele notou o que fizera. Praticamente acabou de declarar que sentia atração pela sua vizinha. Ele parou de mexer nas sacolas e olhou espantado para a moça. Ela apenas sorria e olhava tudo a sua volta. Ela ignorou o elogia. Adam suspirou de alívio e voltou a sua procura. Assim que encontrou o livro, Spector o abriu e leu:

Quem diria, hein? A sobrinha da Dominic! HAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!

Adam pegou a caneta do meio do livro e retrucou:

Fica quieto! Você que gostava dela!

Eu? Eu não! Eu tinha idade para ser pai dela!

Quantos anos ela tem?

Vinte e seis.

Ah... A diferença entre vocês era de... Dezenove anos. Não é muito. Você podia casar com ela.

Se liga, Dam! Eu tinha mais chances com a Dominic do que com a sobrinha dela!

HAHAHAHAHA!!! É mesmo! HAHAHAHAHAHA!!! Velhote!

Hunf!

HAHAHAHAHAHAHAHAHA!!

Adam sorriu e fechou o diário. Ele se levantou e deu de cara com Lúcia muito próxima dele. Por sorte, ela apenas se aproximara e não lera sobre seu ombro. A moça apenas estava próxima. Muito próxima.
-Hã... Obrigado pela ajuda, Lúcia.
-Me chame de Lu.
-Hum... Obrigado Lu.
-Foi um prazer. – ela sorriu e deu um passo, se aproximando mais.
Por impulso, Adam também se aproximou e levou os dedos para o rosto dela. O rosto delicado da moça corou instantaneamente. Foi... Excitante para Adam. Ele queria vê-la sempre vermelha como estava agora. E por isto, ele a beijou intensamente.
E, com a ponta do pé, fechou a porta.

Quando Adam acordou, sentiu uma terrível dor nos quadris, nas costas e nos braços. Ele massageou os locais doloridos enquanto se sentava na cama. Seu diário estava no criado mudo. Assim que Spector o abriu, havia uma palavra aguardando.

TIGRÃO!

Adam riu. De súbito, Spector ouviu um barulho de louça sendo remexida. Ele colocou sua calça e foi até a cozinha. Assim que fez a curva para cruzar o portal, ele se surpreendeu ao ver sua mesa de vidro montada para o desjejum. Ele geralmente comia ou no sofá ou na cama.
-Bom dia.
Ele levantou os olhos da mesa para Lúcia. Ela estava na beira do fogão preparando o café com a camiseta nova de Spector lhe servindo de camisola. De costas para o portal, Lúcia observava Adam sobre o ombro. Seu olhar atraente convidava-o para um beijo de bom-dia.
Adam cruzou os armários e abraçou Lúcia por trás. Dando um beijo em sua nuca, ele sussurrou:
-Bom dia, minha Lady.
Ela riu e virou o rosto para receber um beijo. Adam deu um beijo suave em seus lábios. Subitamente a porta da sala abriu com um estrondo e a voz de Dominic encheu o apartamento.
-Adam! Fiquei muito preocupada com você ontem! Você sumiu e não me avisou! Que bom que voltou! Mas agora minha sobrinha também...!
Dominic chegou ao portal. E quando viu Adam e Lúcia abraçados no meio da cozinha, ela estacou. Surpresa, ela olhava de Adam para a sobrinha e da sobrinha para Adam. Estava tão espantada que não conseguia falar.
-Tia...
Lúcia se soltou dos braços de Ada e cruzou os armários. Mas quando ela apareceu com as pernas à mostra para sua tia, Dominic avançou na moça e lhe meteu um tapa no rosto.
-Dominic! – Adam correu para ajudar Lúcia. Ele puxou esta última para trás de si e colocou o próprio corpo na frente. A mulher mais velha ainda tentou avançar, mas foi contida pelo homem.
-Sua vadia descarada! Eu vou te matar! Vadia! Vadia!
Dominic parou de tentar lutar contra Adam e se virou. Saindo do apartamento do vizinho, ela entrou no seu. Segundos depois, voltou carregando roupas da sobrinha. Ela as jogou no chão da sala.
-Vadia! Vadia!
E saiu. Lúcia estava paralisada, encolhida nos braços de Adam que a envolvia. Ambos olhavam atordoados para a porta. Dominic logo apareceu com mais roupas.
-Vadia! VADIA!
E as jogou no chão novamente. Na porta, apareceu a cabeça do sindico. Provavelmente, o prédio inteiro já estava reunido na porta dele ao ouvir os gritos.
Dominic fez a viagem três vezes. Na última, ela carregava pertences da sobrinha como um Notbook, celular, MP10 e outros aparelhos eletrônicos. Ela os jogou no chão sobre o monte enorme que se formara de roupas, livros, cadernos, ursinhos, acessórios e todos os outros pertences de mulher. Assim que acabou de despejar a sobrinha, Dominic olhou raivosa para ela. Lúcia ainda estava no meio dos braços de Adam, em estado de choque.
-Vadia...
Ela encarou a sobrinha por mais alguns instantes. E depois saiu. Ela se prendeu em seu apartamento e não apareceu até o fim do dia.

-Acalme-se, meu amor. Vai ficar tudo bem. Ela vai te perdoar.
Adam entregou o copo com água e açúcar para Lúcia. Ela o tomou, mas ainda assim voltou a chorar. Ela se encolheu mais na cama e abraçou com força o travesseiro.
-Não, não vai.
-Vai sim. Eu conheço Dominic. Ela é uma boa mulher. Ela vai te perdoar. Ela só... Se surpreendeu ao te ver... Assim.
De súbito, Lúcia parou de chorar. Ela analisou os olhos de Adam.
-Acha que minha tia está brava porque me viu assim? – Spector ficou em silêncio – Dam, por favor! Ela está furiosa porque ela sente atração por você! Não me diga que você nunca percebeu isto?
Ele suspirou.
-Sim, eu já percebi isto. Eu e meu irmão sempre soubemos.
Lúcia se sentou ereta sobre a cama.
-Seu irmão sabia que ela gostava de você?
Adam riu.
-Mais ou menos. Meu irmão e eu sempre soubemos que sua tia gostava de nós dois.
-O que?! Dos dois ao mesmo tempo?! Depois eu é que sou vadia!
Adam olhou sério para Lúcia.
-Amor, ela é sua tia.
-Minha tia que me despejou por inveja.
-Lúcia!
Ela derramou mais algumas lágrimas enquanto se encolhia no peito de Adam.
-Desculpe, Dam. Mas eu estou muito magoada.
Ele sorriu e acariciou os cabelos dela. Passando uma mexa para trás da orelha, Adam disse:
-Tudo bem. Sei bem como é mostrar raiva quando se está magoado.
Lúcia sorriu e fingiu não entender o comentário. Adam entortou as sobrancelhas, triste.
-Quer alguma coisa Lu?
Lúcia fungou e assentiu.
-Pode me deixar um pouco sozinha?
Adam sorriu. Ele beijou sua testa e se levantou.
-Claro.
Pegando o diário, ele saiu. Fechou a porta de seu quarto e foi até seu escritório. Quando ele sentou e abriu o diário, Alex já escrevera.

Que barraco, hein?

Adam suspirou e pegou caneta. Ele escreveu.

Estou me sentindo culpado. Isto não é justo com Lúcia.

Toda vez que ganhamos alguma coisa, perdemos outra.

Eu preferia que ela não perdesse a tia.

Dam... Mesmo que Dominic não se importasse com que aconteceu entre vocês dois, você e Lúcia teriam que ficar juntos.

Por quê?

Você vai entender no fim do mês. Mas vamos mudar de assunto. Você tem que agradar sua namorada. Por que você não compra alguma coisa para ela?

Alex e Adam conversaram por muito tempo sobre várias opções de presentes para agradar Lúcia. Até que Adam decidiu.

Já sei o que vou dar a ela.

O que?

Vou dar sua tia de volta.


Pela sétima vez, Adam bateu na porta de Dominic. Ele estava quase desistindo quando a porta se escancarou. A vizinha apareceu com uma expressão de poucos amigos. Seus olhos estavam inchados e vermelhos. Os cabelos bagunçados. Havia mais rugas em seu rosto. Ela parecia inconsolável.
-O que você quer?
-Esclarecer as coisas.
-Não perca seu tempo Adam. As coisas estão bem claras para mim: minha sobrinha é uma vadia traidora. Se não se importa, eu tenho mais o que fazer. Passe bem.
Dominic fechou a porta. Mas Adam queria muito que ela ouvisse tudo o que ele tinha para falar.
-Dominic! Pelo amor de Deus! Ouça a si mesma! Você está xingando sua sobrinha! – ele esperou a porta se abrir, mas ela continuou fechada. Adam concluiu que deveria apelar para o lado emocional da mulher – Dominic, lembra quando os pais de Lúcia foram viajar para o exterior para trabalhar e conseguir melhores condições de vida? A pequena Lúcia ficou aqui, com você. Ela só tinha seis anos e chorava toda noite de saudade dos pais. Até que ela parou, porque ela considerava você a mãe dela e não aquela que viajou. Você criou Lúcia. Você que é a mãe dela. Pense bem, Dominic! Se você abandona-la, estará abandonando uma filha! Sua filha Lúcia! Ela é sua família Dominic. Não a jogue fora como se fosse lixo.
Acho que está bom. Mais um pouco e eu vou matar a mulher de desgosto. Conclui.
Mas a porta não se abriu. Adam resolveu ir embora. Fizera tudo o que pode.
No entanto, antes de virar para ir embora, a porta abriu lentamente e a figura desamparada de Dominic perguntou:
-Onde ela está?
Adam tentou manter a expressão séria, apesar de quase estar rindo de felicidade por ter alcançado seu objetivo.
-Lá dentro. Venha.
Adam entrou e a vizinha o seguiu.
-Lúcia. Pode vir aqui um instante?
A porta de seu quarto se abriu quase instantaneamente. Lúcia já estava pronta para perguntar qual era o problema quando viu a tia ao lado de Spector. As duas se encaram, mudas.
Adam correu até seu escritório e pegou o diário. Depois passou pela sala lentamente. Antes de sair, ele falou sobre o ombro:
-Vou deixá-las a sós.
Spector saiu do apartamento e fechou a porta. Ouviu sussurros dentro do apartamento. Adam abriu o diário.

Deixe-as aí e vamos para o Parque das Pipas.

Adam então se lembrou de seu carro abandonado na frente do consultório de psicologia. Provavelmente já fora rebocado.

Meu carro. Eu

Mas antes que Adam terminasse de escrever, a tinta vinda do interior do livro o interrompeu.

Vai me dizer que você o abandonou também?

Bem... Mais ou menos. Eu fui a uma seção psicóloga (mamãe me mandou frequentar) e quando eu saí, resolvi ir a pé e depois pegar o carro. Mas eu me esqueci dele por um tempo.

A mamãe te mandou ir a um psicólogo? Se eu estivesse vivo, eu mandaria ELA ir a um psicólogo. Ela é que é a doida!

HAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!! Tem razão! Ela é uma doida mesmo! Mas, se você estivesse vivo, eu não teria enlouquecido.

De súbito, a folha se mexeu levemente, como um suspiro.

Dam, vá para o Parque das Pipas de táxi, ônibus, qualquer coisa. Mas vá. Tem uma coisa que eu preciso te explicar.

Adam foi a pé. Não demorou muito. Vinte, vinte cinco minutos andando. Assim que chegou, ele viu que o Parque das Pipas não perdeu seu ritual: o campeonato de pipas.
O parque não era muito grande, ocupava um quarteirão de porte médio, não era daqueles que ocupavam quilômetros quadrados. Havia várias árvores baixas de copas largas com bancos de cimento sob suas sombras. Todos os caminhos largos saíam da rua e levavam ao círculo enorme bem no núcleo do parque. Pessoas trafegavam de bicicletas, patins, patinetes, skates ou apenas caminhavam.
Adam se lembrou da primeira vez que Alex o levou àquele parque. Alexander tinha dezenove anos e acabara de tirar a carteira de motorista. Como primeiro passeio sozinho com seu carro, resolveu levar Adam para um passeio. Adam ainda tinha nove e olhava maravilhado as pipas que subiam aos céus assim que chegaram.
-Quer uma pipa Dam?
O menino nem pensou antes de concordar. Os dois irmãos passaram horas empinando o papagaio azul e amarelo.
Adam se sentou em um dos bancos e abriu o diário.

Lembra quando viemos aqui pela primeira vez?

Estava pensando nisto agora.

Foi um sacrifício te levar de volta.

Eu só tinha breves instantes de amor familiar. Você queria que eu abrisse mão daquele momento?

HAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!! Não, eu não queria. Pode parecer que não, mas eu também só tinha alguns momentos de amor familiar. Papai e mamãe sempre me deram atenção, mas uma atenção corrupta, podre. Não era legal. No começo, eu achava o máximo. Quando você chegou, achei que ia roubar tudo para você e senti muito ciúmes. Mas depois que nossos pais começaram a ignorá-lo... No começo eu até que gostei, mas depois eu vi que isto não era legal. Que você também merecia carinho. Coloquei-me no seu lugar e senti muita raiva dos nossos pais pelo o que eles fizeram. Eu decidi te dar atenção. E quando fiz isto, vi que nossa relação era bem mais sincera do que a minha com nossos pais.

Uma lágrima escapou dos olhos de Adam e caiu no livro.

Está chorando maricas?

Fique quieto!

HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!! Chora não, Dam! Só estou sendo sincero.

Eu sei.

Alex ficou em silêncio por um tempo. Até que disse tudo de um única vez.

Dam, eu nunca vou te explicar como estamos conversando pelo meu diário. Não posso. Isto causaria um distúrbio no tempo-espaço. Por isto, decidi que esta será a última vez que vamos conversar pelo livro. Então, agora, eu vou te explicar de onde veio aquele dinheiro que você viu na minha conta bancária.

A folha mexeu novamente como um suspiro antes de Alex continuar.

Tudo o que eu já comprei na vida, eu coloquei no seu nome. Eu não possuía bens. Tudo é seu: o apartamento, os carros, os móveis, o dinheiro.
Quando você disse que o teatro estava passando dificuldades, que precisava de dinheiro, eu resolvi pegar dinheiro emprestado com o banco. Eu doaria o dinheiro para o teatro no seu aniversário. Porém, quando chegou aquela carta do banco com o meu saldo e você viu, me acusou de ter roubado este dinheiro. Sabia que você nunca aceitaria este dinheiro. Mas eu estava disposto a te ajudar. Depois de brigarmos, eu fui até nosso advogado e alterei meu testamento: eu deixava os cem mil para o teatro e todo o resto para você. E depois... Bem, você já sabe o resto.
Não foi sua culpa Dam. Como eu disse antes, o que fiz foi porque você é a única pessoa que importa para mim. O banco não pode tirar todo este dinheiro de você porque eu morri. Tive que morrer porque era o único modo de você aceitar o dinheiro para o teatro e não ter que devolver para o banco. Já que eu morri, o banco deveria pegar meus bens para pagar a dívida, mas como eu não tinha bens...
Foi isto Dam. Foi dinheiro de empréstimo para o teatro.  Não foi ilegal. Não foi sua culpa. Eu

A água nos olhos de Adam fez sua visão embaçar. Alex... Ele se sacrificou para resolver um simples problema dele. Se Adam não tivesse lido a carta... Alexander ainda estaria vivo. Com a mão trêmula, Adam só conseguiu escrever.

Obrigado, Al.

Foi um prazer.

Adam riu. Alex continuou.

Faz um favor para mim Dam?

Se eu disse não, seria muito mal-agradecido.

HAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!! Bem, mas faça-me um favor: um dia qualquer, me dê um resumo bem básico da sua vida, por favor. Como você está, como está Lúcia, Dominic e todos os outros. Pode fazer isto?

Claro.

Alex e Adam se “encararam”. Depois Adam escreveu.

Vou sentir muito sua falta.

Não vai, não. Eu sempre vou estar com você.

Eu te amo, Al.

Também te amo, Dam.

E Alex nunca mais respondeu. Adam nem tentou mais se comunicar. Levantando-se do banco de cimento, Spector olhou as pipas que dançavam no céu. Ele sabia que não precisava mais da terapia. Como disse o Dr. Chipperfiels, Adam superara a morte do irmão há muito tempo. Para dizer a verdade, ele nunca se abateu. Adam apenas não se lembrava que Alex sempre estivera vivo. Alex sempre estivera vivo dentro do irmão mais novo.

Querido Al.

Agora eu entendo o que você quis dizer quando escreveu que eu e Lúcia teríamos que ficar juntos. Ela estava grávida! Quando ela me disse, quase caí para trás! Logo de início, eu apostei num menino, mas ela estava confiante que era uma menina.
Bem, eu voltei para o teatro. Achei que já tinha colocado outro ator no meu lugar, mas minha vaga ainda estava... Vaga. HAHAHAHAHAHAHAHAHA!!! Porém, na primeira peça que nós apresentamos, havia um escritor de novelas no público e ele gostou muita da minha atuação e me convidou para participar de uma minissérie que ele estava escrevendo. Era um papel pequeno, mas já dava para começar. Mesmo assim, eu nunca larguei o teatro.
Dominic e Lúcia fizeram as pazes. Na verdade, o que ajudou foi a notícia do nosso futuro filho. Dominic se derreteu quando soube.
Papai ganhou as eleições, mas ficou por pouco tempo. Um dia, vendo uma propaganda eleitoral, eu tomei coragem e pedi para que os principais jornais do país fizessem uma coletiva de impressa comigo. Eu contei todos os crimes dos nossos pais, todos os desvios de verbas. Toda a corrupção dos Spector. E levei provas que peguei da nossa antiga casa numa “visita” que fui fazer. Houve uma boa equipe de investigação para comprovar os crimes, que não aceitou ser subornada pelo Partido. Depois que todos os crimes foram comprovados, nosso pai foi tirado do cargo de Presidente da República e o segundo colocado foi posto no lugar. Acho que ele será um bom presidente. Mas o bom é que Thomas nunca mais poderá chegar perto de uma eleição, a não ser para votar.
Mas quero dar ênfase a minha família. Quando fomos fazer o primeiro ultra-som da nosso filho, descobrimos que eram gêmeos! E depois, quando fomos descobrir qual era o sexo das crianças, vimos que era um casal! Já escolhemos os nomes: Érica e Eduardo. Observação: Lúcia quis escolher o nome Alexandre! Mas eu não aprovei! Sabia que você não iria aprovar um negócio desses!  HAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!
Não preciso dizer que Dominic ficou toda prosa quando soube dos dois netinhos a caminho. Ah, e ela está namorando! E o cara é o meu antigo psicólogo, o Dr. Chipperfiels! Eu jurava que ele era casado. Por sorte, ela está bem mais preocupada com as crianças do que com o namorado novo! HAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!
Elas nasceram no dia 25 de setembro. Já estão com dois meses. O Dudu chora o dia inteiro e a Rick chora a noite. HAHAHAHAHAHAHAHAHA!!! Eu e Lúcia nos revezamos. Mas é muito bom ser pai. Prometo dar atenção aos meus filhos.
Queria muito que eles te conhecessem. E queria mais ainda que você os conhecesse. Eles puxaram seu lado carinhoso (com exceção da parte do choro).
Eu estou muito feliz. Só tem um ponto ruim: queria muito que você ainda estivesse comigo.
Mas, sabe que você tem razão? Eu não sinto sua falta! Porque você está do meu lado, sempre esteve! Mesmo que não podemos mais conversar, sei que você olha por mim e sempre será meu irmão anjo da guarda!
 Eu te amo,
Do pequeno Dam.

Fim